quarta-feira, 23 de setembro de 2015

À Sra. Juiza

Em Minas Gerais corre o processo contra o fazendeiro João Fábio Dias, acusado, dentre outros crimes, de tentativa de homicídio. Em uma decisão quase inédita, João Fábio teve a prisão decretada, ficou foragido e agora, livre, lança tiros ao alto para assustar quilombolas.

  
Foto: Valda Nogueira

Texto: Ana Mendes

A agenda para último dia de trabalho foi acompanhar o advogado André Alves até o Acampamento Santa Fé. Desde janeiro do ano passado ele está assessorando o caso do Quilombo Nativos do Arapuim, no município de São João da Ponte, em Minas Gerais. O grupo está precisando de apoio jurídico, pois há cerca de um ano sofreu uma tentativa de homicídio por parte de um fazendeiro de nome João Fábio Dias, o “patrãozinho”. Patrãozinho era como ele era chamado pelos três homens encapuzados que chutavam e queimavam com cano quente a cabeça de 12 pessoas estiradas no chão. De bruços, protegendo as crianças que ali estavam, eles ouviam os homens armados deliberando sobre suas vidas, “ o que a gente faz com eles, patrãozinho? Mata e põe fogo em tudo?”. Assim relataram as vítimas ao Ministério Público Federal que decidiu intervir depois da notícia do episódio ter repercutido internacionalmente.“O que estamos acostumados na lida dos conflitos socioambientais é a utilização do peso da lei por parte da polícia, Ministério Público e Judiciário somente para os pobres e desvalidos. No caso dos quilombolas Nativos do Arapuim, num primeiro momento, o peso da lei penal atingiu o latifundiário, mas por pouco tempo.”, explica o advogado se referindo ao pedido de prisão preventiva que recaiu sobre João Fábio Dias, deixando-o foragido por quase oito meses.   

Foto: Ana Mendes










Vivem hoje no Acampamento Santa Fé trinta famílias. Antes, há cerca de um ano, elas eram mais de 180, mas o medo dispersou o grupo. A maioria foi paras as cidades mais próximas, Verdelândia, Janaúba e outras. Os outros montaram esse acampamento na margem oposta do rio Arapuim, fora das terras de João Fábio, na tentativa de resistir e pressionar o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para dar continuidade a perícia antropológica que já havia iniciado. Aparentemente são os jovens que mantém a coragem inabalada. Mesmo os que foram vítimas do ataque dizem que ficam até o final. Gustavo Prates Santos, de 25 anos, tem uma bala alojada perto do pulmão. Ele conta que correu para o mato, mas foi atingido por disparos que eram lançados aos montes na direção dos que fugiam. “Se não houvesse fugido tanta gente, eu acho que eles teriam matado todo mundo. Aí não teria ninguém pra contar a história, né?”. Segundo o relato das vítimas, o grupo era composto por dez homens encapuzados que desceram de dois carros, uma Hilux e uma S10, gritando ser policiais. Mas logo revelaram o seu verdadeiro intuito: “deita aí bando de vagabundo, ladrão de terras!”. Na ação, os pistoleiros se dividiram: sete deles, buscavam os fugitivos no matagal e os outros três, junto com quem acreditam ser João Fábio Dias, torturavam os que não puderam escapar.

Foto: Ana Mendes
De acordo com a Fundação Cultural Palmares não há nenhum ladrão de terras no Acampamento Santa Fé. O quilombo, que se chama Nativos do Arapuim, do qual fazem parte as comunidade Boa Vistinha e Limeira, já foi certificado. E agora está em fase de realização de laudo antropológico. Uma das técnicas responsáveis por este trabalho Camila Moreira, antropóloga do INCRA de Belo Horizonte, ao telefone, conta que “fomos numa quinta a tarde lá [no acampamento], na sexta foram ouvidos tiros e no sábado isso nos foi comunicado. O que os quilombolas dizem é que se trata de uma retaliação. Mas existe uma preocupação do poder público, eles não estão totalmente desprotegidos. Nós já comunicamos a Prefeitura e o Ministério Público sobre essa ocorrência.”. Segundo os quilombolas, os tiros vinham da sede da fazenda de João Fábio, que hoje, com o mandato de prisão suspenso (mas ainda respondendo pelos crimes cometidos) circula livremente, assustando a comunidade. “Muito tiro, viu? Não economizaram bala...”. O desenlace dessa história não pode ser mais pré anunciado. Não seria o caso, Vossa Excelência, de pedir novamente a prisão preventiva de João Fábio Dias? Aguardamos.

  Foto: Ana Mendes

 Foto: J.R Ripper

 Foto: Valda Nogueira


 Foto: Valda Nogueira

Foto: Sara Gehren


 

sábado, 29 de agosto de 2015

A palavra é território

Texto: Ana Mendes e J.R Ripper
 
Ônibus lotados de quilombolas, indígenas, vazanteiros e outros povos e comunidades tradicionais, atravessaram o semiárido no dia 27 de agosto. O objetivo: entregar um documento ao atual governador do estado, Fernando Pimentel e ao ex-presidente Lula. Montes Claros, cidade aspirante a grande centro urbano, lotou. Isto porque agora é hora de olhar para os povos remanescentes e “entender o contexto local”, palavras ditas pelo próprio Lula.














Aproveitando o convite que a Fundação Darcy Ribeiro fez a Lula para vir a cidade comemorar os 30 anos de lançamento do livro 'O Povo Brasileiro', os povos tradicionais cortaram o sertão imbuídos da missão de reaver (e manter) seus territórios. Aquele mesmo pedaço de chão em que viveram seus avós e bisavós. Aquele cantinho no mundo onde enterraram seus umbigos. Aquela vereda onde Mãe Piana fez o parto de mais de duas mil crianças. A terra é consequência. Na terra se planta, no território brotam histórias. Para entender este contexto vamos abrir os livros de história, os acervos públicos, os arquivos do D.O.P.S. Longa jornada.

Esta é a responsabilidade que recai sobre o então governador de Minas Gerais. Ele tem a chance de cumprir as reivindicações descritas em vinte e dois tópicos na carta que recebeu. Pimentel está com a faca e o queijo na mão pra realizar o melhor governo da história e reparar a injustiça que durante séculos essas populações sofreram sendo expulsas para dar lugar a monocultura, eucalipto, agrohidronegócio e minério. O território exigido por eles são, na maioria, terras devolutas do estado ou terras improdutivas.

  Foto: Ana Mendes
 Foto: Ana Mendes
Foto: J.R Ripper
 Foto: Ana Mendes
 Foto: J.R Ripper









sexta-feira, 20 de março de 2015

Filha da terra















Aos 13 anos ela foi convidada pra ir pra capital, São Luís, morar na casa de uma família e estudar. Era boa a proposta, foi o que pensou ela e a mãe, afinal, ali no interior a menina teria poucas chances além de ser dona de casa. Mas a ida pra cidade significou pouco estudo em muito trabalho. Em troca de moradia, alimentação e roupa ela arrumava a casa e cozinhava.


A quilombola Roseane Costa, hoje com 41 saiu assim do povoado de Itamatatiua, sob a promessa de estudar e 'ser alguém' foi trabalhar sem receber, como era muito comum na época. Aos 23 anos ela foi ainda pro Rio de Janeiro. Lá trabalhou numa cafeteria e se virou num bico aqui outro ali pra pagar o curso de letras na Universidade Gama e Souza, "o dinheiro do pagodinho faltava", brinca ela.

O sonho era voltar pra casa, pro seu povoado querido. Hoje, Roseane é a única professora 'filha da terra', os outros são todos de municípios vizinhos. Ela não, atravessa a rua e tá no trabalho. Quer dizer, menos no final de semana, nestes dias, ela pega a moto, viaja uma hora de ferry e pronto "vou lá rodar a saia no tambor", em São Luís.

Essa pequena aí



Texto: Ana Mendes
Fotos: Ana Mendes (cor) e Valda (p&b)

A espera de se consultar com a nova médica, Dr. Laura Martins, diversas pessoas encheram o pequeno espaço da capela da comunidade Arenhegaua. É ali mesmo que a equipe de enfermeiras, agente comunitário e médica aplicam injeções, medem, pesam as pessoas e distribuem remédios.

Entre os adultos, chama atenção a quantidade de crianças. Bebezinhos de colo aos montes, todos lindos e cheirosos, afinal é dia de consulta e das dolorosas injeções. Um choro aqui outro ali. As mães amamentando e embalando os nenes. apreensivas com a dor das picadas nas pernas roliças. Só mães, não vi nenhum pai. Poucos homens em geral precisaram de médico naquela manhã.

Na televisão, uma nova campanha para as meninas de 10 a 14 anos se imunizarem contra o HPV. Na capela, mulheres saem com a receita de cremes vaginais contra a bacterias simples ou quem sabe seja HPV? Não há exame. A médica é clinica geral, médica da famíla, faz o que pode, visivelmente com muito carinho. Não há injeções preventiva para os meninos? Eu me pergunto do outro lado da televisão.

Um homem me fala sobre o grande índice de jovens grávidas nos quilombos. Ao seu lado, no banco da igreja, uma menina com uns cinco ou seis meses de gestação. "Tá vendo essa menina aqui?" Eu olho pra ela e ela olha pra mim. "Tem 17 anos". Ela fica séria, incontáveis vezes ouviu este comentário desde que engravidou. Eu me pergunto, cadê o pai pra dividir as horas que não passam naquele banco de espera? Cadê o pai pra ouvir os comentários sobre o futuro de seu filho? O silêncio da menina e o meu, não chega a ser cúmplice. Não nos conhecemos. Em comum desenvolvemos a capacidade de optar rapidamente entre responder ou não à agressões como esta. Naquela ocasião, calamos. Mas nem sempre, por isso esse texto.






domingo, 15 de março de 2015

Morrer é uma festa















- O que são essas bebidas aí?
- É assim, vamos imaginar que hoje morre uma pessoa. Se está tendo um jogo de futebol no momento em que a família começa a espalhar a notícia do falecimento, todos param. Tudo pára. Os familiares começar a ir atrás de bebida e comida. Muita comida pra dar pro povo. Se por acaso não têm dinheiro pro caixão, cada um dá um pouco. Aí, a noite inteira ficam velando o corpo, bebendo cachaça e vinho. Muito. E jogam também. Dominó e baralho. Aí um solta uma piada aqui, outro dá uma risada ali. Morrer aqui é uma festa.

Regiane Nogueira, quilombo Arenhenguaua, Alcântara, Maranhão
















Fotos: Ana Mendes (cor) e Valda Nogueira (p&b)

sábado, 14 de março de 2015

Dos trinta, um

Servulo Borges, conhecido como Borjão, Alcântara, Maranhão.

Existe uma geração de meninos em Alcântara e arredores que não desfrutam mais os doces anos, mas ficaram reconhecidos e tiveram sua trajetória marcada por uma decisão que tomaram quando jovens. Com o incentivo dos pais, que poucas alternativas viam para os filhos, trinta meninos saíram do interior do Maranhão, no município de Alcântara, para estudar durante seis meses em São Paulo. Esta iniciativa fez parte da estratégia de persuasão para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), nos anos 80. "Voltamos pra casa com os valores do sul. Farda de botão dourado, dinheiro no bolso. Aí, qual é o pai que vai ter coragem de dizer que este projeto é ruim?", conta Servulo Borges, um dos meninos escalados pra viagem, hoje com 52 anos. 

O papel dos garotos era fazer o corpo a corpo com a comunidade no processo de convencimento. E então, o projeto era vendido como se fosse totalmente harmônico com as populações locais. "Nós fomos os 'piotários', os primeiros otários. Só a partir de 87 fui perceber que aquilo era uma furada", completa Borges, que hoje é uma liderança ativa, totalmente dedicado às demandas das quase 300 comunidades quilombolas de Alcântara.

Borges é casado com Eliete, os dois não tem filhos e a vida é então exclusivamente organizada em função da luta pela titulação dos cerca de 90 mil hectares. E também pra cuidar de uma diabete que desenvolveu no decorrer dos anos. "Meu sangue é doce", ele diz espantando os mosquitos e rindo. E de sangue doce, sem mágoas dos companheiros enfatiza "dos trinta soldados, o único que teve coragem de sair e dizer que este projeto foi e é ruim, fui eu."

Texto e foto: Ana Mendes

Porque fotografar o Maranhão?

Você já foi seis vezes a Alcântara, no Maranhão, fotografar os quilombos, porque está voltando lá?
Ripper: Eu estou retornando a Alcântara pra rever algumas populações que já documentei outras vezes. O que me chama atenção lá é que as mulheres têm destaque especial na luta. Tanto em sua função arquetípica de cuidar dos filhos e da casa quanto como pessoas que empurram os homens e a comunidade pra luta.